Como ler as entrelinhas de um documento e descobrir mais informações

Em Pesquisa, Registros Por Tati MarinDeixe um Comentário

Genealogia também é história, mas frequentemente, para algumas pessoas (ou todas elas em algum momento), a genealogia se resume a coletar nomes, datas e locais. Isto porque estas são as informações primordiais e talvez as mais fáceis de obter. Pode não ser uma escolha, mas a pobreza de dados das fontes disponíveis, ou pela falta de análise das entrelinhas.

Possivelmente todas as fontes de pesquisa têm informações que não estão escritas no documento, mas que podemos supor ou inferir. Enquanto o que está escrito no registro é denominado de evidência direta, o que não está no documento, mas que é possível concluir, são as evidências indiretas.

Vamos analisar uma certidão de nascimento (1) aleatória, como esta de alguém que não tenho parentesco e nasceu no Rio Grande do Sul. Para ver a imagem armazanada no FamilySearch clique neste link.

Vou utilizar apenas o registro número 9, que está no recorte abaixo.

A caligrafia está relativamente fácil de decifrar, mas eis aqui a transcrição.

Aos vinte e cinco dias do mez de feverei=
ro do anno de mil novecentos e quinze, di=
go, novecentos e dezesseis, neste setimo
districto de São Francisco de Paula de
Cima da Serra, Estado do Rio Grande
do Sul, em meu cartorio compareceu o
cidadão Santo Gobbi e, em presença das
testemunhas abaixo assinadas decla=
rou: Que no dia dez de Novembro do
anno de mil novecentos e um, às quinze ho=
ras, neste districto em sua residencia
nasceu uma criança que foi padri=
nho Stanislau Vichinski e baptisada
com o nome de João, filho legi(ti)mo
de Santo Gobbi e Joanna Vichinski, elle
natural do municipio de Caxias e ella da
Polonia Russa, cados casados neste
districto, agricultores, neto parterno de
Miguel Gobbi e Camilla Simeoni e ma=
terno de Stanislau e Marianna Vichins
ki. Do que para constar faço este termo
que assigno com o declarante e as tes
temunhas Boaventura Ramos Pache=
co e Manoel Diogenes dos Santos Norte,
ambos empregados publicos e residen=
tes nesta sede. Eu, Virgilio Ramos of=
cial do registro civil que o escrevi e
assigno.

assinatura: Santo Gobbi
assinatura: Boaventura Ramos Pacheco
assinatura: Mel Diogenes on Ss Norte
O official do Registro Civil Virgilio Ramos

Lembrando que em transcrições são mantidas a pontuação e grafia da forma como foram escritas.

Que evidências diretas podemos extrair deste registro?

Nome: João Gobbi

Nascimento: 10/Novembro/1901, em São Francisco de Paula de Cima da Serra, Rio Grande do Sul, Brasil

Pais: Santo Gobbi, nascido em Caxias e Joanna Vichinski, nascida na Polônia

Avós Paternos: Miguel Gobbi e Camilla Simeoni

Avós Maternos: Stanislau e Marianna Vichinski

Mas quais são as evidências indiretas, aquelas que podemos inferir ou supor, existem no registro?

Antes de seguir para as evidências indiretas, é preciso fazer uma ressalva: a criança nasceu em 1901, mas o registro foi criado em 1916. Será que isso pode afetar a informação contida no documento? Certamente. E isso era muito comum naquele tempo. Os pais levavam anos para registrar seus filho … por diversos motivos: distância, ausência de cartório na região, falta de informação, etc. Inclusive, o pai aproveitava para realizar o registro de vários filhos no mesmo dia. É o que se percebe no registro seguinte ao analisado. Santo Gobbi registra na mesma data, um filho nascido em 1903.

Então vamos às evidências indiretas.

Possivelmente o padrinho da criança era o próprio avô materno da criança, ou, talvez, um irmão da mãe que tinha o mesmo nome do pai. Sendo pai ou irmão de Joanna, é uma informação a ser pesquisada.

O registro informa que o pai da criança, Santo Gobbi, é nascido em Caxias, o que facilita encontrar a certidão de nascimento do genitor. O menino nasceu em 1901, então podemos definir um intervalo de nascimento entre 1860 (se ele teve o filho aos 50) a 1894 (estourando, se teve filhos quando era bem novinho).

Mas as colônia italianas Dona Isabel e Conde d’Eu que deram origem à diversas cidades do leste gaúcho, inclusive Caxias do Sul, começaram a receber imigrantes italianos em 1876 (2), o que coloca seus pais naquela região apenas depois desta data. Então temos um período de uns 18 anos para pesquisar a certidão de nascimento de Santo Gobbi. Mas a intuição me diz que ele nasceu por volta de 1890.

Miguel Gobbi e Camilla Simeoni, os avós paternos, possivelmente vieram da Itália e chegaram no Brasil em 1876 ou depois. Podem ter vindo já casados ou terem se conhecido e se casado no local. Mais hipóteses para serem confirmadas ou não em futuras pesquisas em registros de imigração e, depois, certidões de casamento.

Joanna Vichinski, a mãe, nasceu na Polônia, enquanto o país estava sob o poder da Rússia. Uma pesquisinha básica no Google diz que o país ficou sob domínio russo de 1815 a 1915, o que não ajuda muito. Talvez não ajude em nada. Mas é uma informação a ser guardada.

Se Stanislau, padrinho da criança, é o avô, então significa que os pais de Joanna vieram com ela para o Brasil e, portanto, se casaram no país de origem. Mais uma busca a ser feita em registros de imigração.

Uma informação relevante é que existia uma prática utilizada para a declaração de nascimentos nas colônias italianas do Rio Grande do Sul. Existiam os “inspetores” que eram responsáveis por reunir as informações e ir ao cartório para a criação do registro. Como acontece com a maioria dos registros do livro escolhido, cujo inspetor era um indivíduo chamado Alexandre de Moraes Stumpf. Mas Santo Gobbi foi o declarante do nascimentos de dois filhos neste momento. Isso pode não significar muita coisa, pode até não ter significado algum, mas de posse do conjunto dos dados, pode fazer sentido e levar a outras suposições.

E, no final, a cereja do bolo, a assinatura do pai. A possibilidade de visualizar a caligrafia do seu ancestral traz um sentimento de proximidade, cria algo palpável, mesmo que não seja, algo concreto, mesmo que vejamos apenas no virtual.

E você, encontrou alguma outra evidência indireta?

Neste post falei um pouco sobre evidências diretas, que são os dados vitais, e indiretas, que são aquelas que inferimos. Todas elas nos levam a mais pesquisas e à história da família. Mas há também a evidência negativa e a ausência de evidências, o que nos levam a mais conclusões. Mas fica para um próximo post.

Então vai lá. Pega todos os documentos que você tem, mesmo que já tenha lido inúmeras vezes, e leia de novo. Depois me conta se encontrou mais evidências nas entrelinhas de uma certidão.


1. “Registros civis, 1916-2002,” Sociedade Genealógica de Utah, FamilySearch (https://www.familysearch.org/ark:/61903/3:1:3QSQ-G9LD-W324?cat=671258 : data do acesso 6 de março de 2020), imagens digitais, “Nascimentos 1916-1921,” imagem 9, registro nº 9, folha 8v; citando “São Marcos (Rio Grande do Sul). Registro Civil.”

2. Rovílio Costa, Luis Alberto de Boni, Nilo Salvagni e Élyo Caetano Grison, As colônias Italianas Dona Isabel e Conde d’Eu (Rio Grande do Sul: Est, 1999), 15.

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